O IPEA e o desarmamento civil.

(Voluntariamente o IPEA joga sua reputação no lixo)

No dia 01 de abril de 2013, numa cerimônia realizada no Rio de Janeiro, o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em conjunto com o Viva Rio, realizou o evento "Armas e Homicídios: Dois Anos do Massacre de Realengo". Nesta ocasião foram apresentados à sociedade os trabalhos intitulados: "Impactos do Estatuto do Desarmamento sobre a Demanda Pessoal de Armas de Fogo" (autor: Marcelo Neri) e “Mapa das armas de Fogo nas Microregiões Brasileiras” (autores: Daniel Cerqueira, Danilo Coelho e Roberto Siqueira).

A data não podia ser mais apropriada para o evento: o dia internacional da mentira, também chamado dia dos tolos. Mas, mesmo que não considerássemos essa data suspeitíssima, outras evidências deveriam ser suficientes para, no mínimo, haver um questionamento quanto a seriedade desses “estudos” por autoridades e jornalistas, a saber:

1) Um dos autores era, na época, o próprio presidente do IPEA, o Sr. Marcelo Neri, que também ocupava o cargo de ministro interino da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE). Ora, alguém poderia esperar um relatório deste senhor que botasse em dúvida uma política do governo?

2) Um dos autores do “estudo” Mapa das armas de Fogo nas Microregiões Brasileiras já havia publicado trabalhos tecendo loas ao desarmamento.

3) Os trabalhos foram apoiado pelo Viva Rio, uma ONG filiada a IANSA (International Action Network on Small Arms) que recebe verba do exterior com o objetivo de promover o desarmamento na América latina.

Mesmo que os fatos acima não fossem suficientes para desacreditar os trabalhos do IPEA, se formos examinar, na última página, os trabalhos referenciados nos “estudos” de Daniel Cerqueira, veremos que as únicas referências apresentadas são outros trabalhos dele mesmo. No meio acadêmico isso não é visto com bons olhos. Se um pesquisador apenas se autoreferencia, pode significar que ele não encontrou nenhum outro trabalho que corrobore sua tese. A única outra referência externa citada é um estudo de 2011 da ONU (Global Study on Homicide – Trends, Context, Data) que, curiosamente, conclui exatamente o contrário do trabalho do IPEA, ou seja: que não há evidências que comprovem que a presença de armas de fogo afeta os índices de homicídios (1).

No trabalho de Marcelo Neri, as referências são os mesmos trabalhos autoreferenciados de Cerqueira e outros publicados pelo Viva Rio, uma instituição cujo compromisso com o desarmamento civil invalida qualquer credibilidade de seus estudos.

Diante dessas evidências de que não se tratavam de trabalhos sérios, óbvias para qualquer pessoa com um mínimo de isenção, não nos preocupamos em divulgar uma análise dos conteúdos por ocasião de sua publicação. Entretanto, nos debates atualmente em curso na Câmara dos Deputados (maio 2015), observamos, com alguma surpresa, que inúmeras autoridades citaram os trabalhos do IPEA como justificativa para não se alterar o Estatuto do Desarmamento

Assim, meio que a contragosto, resolvemos expor neste artigo as contradições, inconsistências que permeiam os trabalhos do IPEA e invalidam suas conclusões (e, de quebra, desacreditam totalmente a instituição). Meio a contragosto porque entendemos que este deveria ser o “dever de casa” de jornalistas e autoridades antes de, açodadamente, divulgar e validar com o peso de seus órgãos de mídia e posições hierárquicas no governo os resultados apresentados.

Vamos começar esta análise pelo trabalho de Cerqueira et al. intitulado Mapa das Armas de Fogo nas Microregiões Brasileiras. Isto se deve ao fato de que este trabalho serve de referência ao trabalho de Neri e também por ser mais insidioso, como veremos a seguir.

Logo na introdução os autores estabelecem os objetivos do “estudo”: ...produzir um mapeamento das armas de fogo nas microrregiões brasileiras e discutir o papel que as mesmas exercem para estimular (ou desestimular) crimes violentos e crimes contra a propriedade. Em outras palavras, os autores querem verificar se a tese, inicialmente proposta por John Lott Jr e David Mustard, da Universidade de Chicago, em 1998 (que mais armas numa região implicam em menos crimes) é válida para o Brasil – muito embora nem os nomes nem o estudo de Lott/Mustard sejam explicitamente mencionados – talvez para que ninguém tenha a curiosidade de lê-lo

A grande questão que incomoda o governo e que os autores tentam explicar nas 11 páginas desta “pesquisa” é:

1) Porque a região Nordeste, que possui o menor número de armas legais no país é a região que possui maior taxa de homicídios?

2) Porque a região Sul, que possui a maior taxa de armas legais no país apresenta a menor taxa de homicídios?

Esta questão têm sido levantada por jornalistas independentes observando dados de instituições governamentais (o IBGE, entre outros) e o governo precisava urgentemente encontrar uma explicação para dar a sociedade.

No segundo item, intitulado “A relação entre armas de fogo e crimes no Brasil”, os autores começam as auto-referências, citando um trabalho de Daniel Cerqueira, de 2012 e 2013, que conclui que 1) O Estatuto do Desarmamento teve um efeito significativo para diminuir a prevalência de armas nos municípios paulistas (isso não é óbvio?); 2) a menor difusão de armas nessas localidades teve um efeito significativo para fazer diminuir o a taxa de homicídios em São Paulo; e 3) não há qualquer correlação entre difusão de armas de fogo nas cidades e crimes contra a propriedade. Alguém duvida que ele chegaria a estas conclusões?

Em seguida os autores admitem que utilizaram proxis (2) para estimar o número de armas numa região. É aqui que aparece o truque empregado para chegar aos resultados desejados pelo governo.
Nada temos contra o emprego de proxis. É um artifício válido, desde que haja alguma correlação com a variável pesquisada. E quais foram as proxis empregada pelos autores? Vejamos a primeira delas:

“Segundo várias pesquisas no âmbito internacional, a melhor proxy para a difusão das armas de fogo nas cidades é dada pela proporção de suicídios cometidos com o uso da arma de fogo, em relação ao total de suicídios ocorridos na localidade.”

Ora, qualquer pessoa que conhece um pouco o assunto armas na sociedade sabe que essa proxi não é válida. A Suiça, onde 27,2% dos lares possuem uma arma de fogo, os suicídios cometidos com armas são apenas 20,8% do total. Na Noruega, onde 32% dos lares possuem armas de fogo, apenas 12,3% dos suicídios são cometidos com este meio (4). O mesmo fenômeno (baixo uso de armas do fogo em suicídios) acontece em Israel e outros países bem armados. Em nenhum país do mundo essa relação foi provada. As pessoas não se matam porque tem uma arma à disposição. Aliás, o único lugar onde o suicídio cometido com armas de fogo prevalece sobre as demais formas de se tirar a própria vida é nos EUA, mas todos os estudos concluem que este fato é uma questão cultural e nada tem a ver com a difusão de armas neste país. Portanto, esta proxi utilizada pelos autores para estimar a densidade de armas nas microrregiões do Brasil é falha e não pode apresentar resultados confiáveis. Aliás, repararam que os autores falam em “várias pesquisas” mas não citam nenhuma?

Prosseguindo, os autores afirmam: É interessante apontar que essa medida passa ao largo da discussão se a arma de fogo é legal ou ilegal. Ou seja, a disponibilidade da arma de fogo é em si um elemento com poder criminogênico, a despeito se ela é legal ou ilegal. Veja, caro leitor, já no item 3 do trabalho os autores chegaram a conclusão que “a arma de fogo é em si um elemento com poder criminogênico” (?!?). Muito embora a quase totalidade dos cidadãos que adquirem uma arma de fogo (100% no caso de armas curtas) visem sua proteção pessoal e de seu lar, principalmente devido a seu poder de dissuasão, essa ideia óbvia não passa pela cabeça dos autores. Eles não se preocupam em contestar a tese de Lott e Mustard que, para eles, é simplesmente absurda. Arma é para cometer crimes e isto é um dogma inquestionável. Como veremos adiante, este dogma permeia todo o trabalho e invalida suas conclusões.

Vejamos a segunda proxi usada pelos autores para determinar a difusão de armas de fogo numa dada região. Para montar as figuras 1 e 2 da página 8 foi empregada a proporção de homicídios cometidos com arma de fogo em relação ao total de homicídios. Vemos aqui o dogma em ação. Se há mais homicídios com armas de fogo, “obviamente” é porque há mais armas na região. Não armas nas mãos dos bandidos, não armas ilegais, mas simplesmente armas. Como dizem os autores, não há diferença entre arma legal e ilegal – são todas criminogênicas. A hipótese de que haja mais homicídios porque as vítimas estão desarmadas e indefesas e os criminosos, por conta disso, ficam mais ousados, não entra em consideração.

Com o recurso dessa proxi o número de armas de fogo existentes numa região passa a ser função do número de homicídios cometidos com elas. Aqui vemos uma falácia lógica elementar intitulada “afirmando o consequente”. Isto se dá quando um leigo usa o resultado encontrado como justificativa dele mesmo.

Além de ser uma falácia lógica facilmente detectável, ela traz uma conclusão implícita importante. Se o número de armas legais diminuiu e o número de homicídios aumentou, então é porque o número de armas ilegais aumentou. O problema é que não há como estimar o número de armas ilegais nem nenhum dado para se inferir que este número aumentou depois do Estatuto do Desarmamento. Tampouco os autores têm qualquer preocupação em mostrar isto.

E com isso o governo conseguiu a explicação que buscava: A tese “Mais armas, Menos Crimes” não se aplica ao Brasil. O Estatuto do Desarmamento é um sucesso e se o número de homicídios aumentou no país é porque o número de armas ilegais aumentou. A conclusão não declarada (mas óbvia) é que devemos tornar ainda mais rígidas as leis sobre armas. Parabéns ao IPEA - cumpriu bem seu papel.

 

Vamos analisar agora o trabalho de Marcelo Neri intitulado “Impactos do Estatuto do Desarmamento sobre a Demanda Pessoal de Armas de Fogo”.

Por incrível que pareça concordamos com a maioria dos resultados encontrados por Marcelo Neri, muito embora discordemos das justificativas apresentadas para eles.

Vejamos as conclusões do trabalho de Neri:

A presente pesquisa... ...revela que após a promulgação do Estatuto do Desarmamento brasileiro a compra anual de armas de fogo pelas famílias caiu de 57 mil para 37 mil, o aumento de 11% nas despesas unitárias com armas e munições também é consistente com as restrições de oferta imposta pela nova lei.
Concordamos plenamente. Nisso o Estatuto de Desarmamento foi um sucesso: desarmou os cidadãos e aumentou os custos associados a aquisição e manutenção das armas.

A proporção de adultos que compram armas cai 40,6% depois do advento da lei. A compra de armas cai mais onde era maior: jovens homens solteiros de baixa educação mas que já chegaram a classe C.
Concordamos em parte. De fato é inegável a queda nas vendas de armas no país. Também concordamos que é muito difícil para um adulto da classe C arcar com os custos de aquisição de uma arma legal no Brasil. Na prática existe apenas um fabricante monopolista que cobra o quanto quer pelas armas e munições; o governo impõe as mais altas alíquotas de impostos diretos (IPI e ICMS) sobre estes produtos e os trâmites burocráticos (exame psicotécnico, certidões negativas e teste de proficiência) elevam o custo em torno de R$1.000,00. Sem dúvida é uma despesa que um pai de família da classe C não pode arcar (é difícil também para os solteiros). Não concordamos com a explicação de que "compram armas porque são ignorantes". Há duas explicações para este resultado. Primeiro: pessoas de baixa renda vivem em comunidades mais violentas e por isso têm necessidade maior da proteção de uma arma de fogo. Lembramos que quem ascendeu à classe C se destaca em sua comunidade. A segunda é que essas pessoas de "baixa educação" da classe C são mais “inocentes” e declararam seus gastos com armas de fogo, algo que as pessoas mais esclarecidas das classes A e B jamais declarariam a uma pessoa estranha – mesmo sendo um pesquisador credenciado.

A análise por posição na ocupação revela que empregadores são os maiores compradores de armas com chances 219,7% maiores que os empregados privados. A maior percepção da necessidade de proteção do patrimônio talvez explique o resultado.
Concordamos plenamente.

Os pontos de resistência na compra de armas estão no campo, com queda de 25%, e na região Sul, com crescimento de 21%, assumindo a liderança nacional entre as regiões na compra de armas pessoais.
Concordamos plenamente. O cidadão do campo tem uma necessidade maior que o citadino de ter uma arma para sua defesa e de sua propriedade. As distâncias até o posto policial e o hospital mais próximos, além da dificuldade de comunicação e de acesso nas estradas de terra, tornam a arma de defesa um gênero de primeira necessidade. Também já era conhecido de todos que a região Sul tem uma maior afinidade com armas de fogo que o resto do país, fruto da imigração europeia e das tradições revolucionárias gaúchas.

Convenhamos, é necessário uma pesquisa do IPEA para mostrar esses resultados óbvios?

Em nosso entender, a revelação mais importante desta pesquisa foi mostrar como o Brasil é um país desarmado (algo que o autor não dá nenhum destaque). Foram pesquisados 48 mil domicílios, uma amostra impressionante, e o que se constatou é que, antes do Estatuto do Desarmamento (2003), apenas 0,0397% da população brasileira tiveram despesas com armas de fogo no trimestre anterior a pesquisa (56,9 mil pessoas). Seis anos depois do Estatuto (2009), este percentual cai para 0,0236% (37 mil pessoas). Estes números são eloquentes e mostram que a mensagem divulgada pelas ONGs anti-armas, de que a população brasileira está muito armada, que no país impera uma “cultura de armas”, que a causa da criminalidade é a grande presença de armas e que existe um grande número de armas ilegais, não passa de um grande embuste.

Caro leitor: Em nossa opinião estes "estudos" do IPEA lembram muito a elaboração de um mapa astral. Quando alguém vai a um astrólogo e encomenda um mapa astral, este traça gráficos, faz cálculos, consulta tabelas e faz uma porção de coisas que parecem ciência, mas o resultado final é puro esoterismo. Da mesma forma, os autores assinalados traçam gráficos, montam tabelas, fazem regressões, curvas de distribuição, calculam desvio padrão e uma porção de outras coisas que parecem com estatística, mas o resultado final também é puro esoterismo.

Há, porém, uma grande diferença entre um astrólogo e os pesquisadores do IPEA. O astrólogo realmente acredita no que está fazendo. Quanto ao pessoal do IPEA, temos nossas dúvidas.

Rio de Janeiro, 02 de junho de 2015

Leonardo Arruda
Diretor da Associação Nacional dos Proprietários e Comerciantes de Armas - ANPCA

NOTAS

(1) "Patterns related to homicides committed with firearms raise the natural question of the relationship, or non-relationship, between firearm availability and levels of homicide, and whether increased firearm availability is associated with increased overall levels of homicide, in particular. From a theoretical perspective, no dominant theory exists that explains the relationship between gun ownership and homicide, or indeed crime in general, as guns can confer both power to a potential aggressor and to a potential victim seeking to resist aggression." (pag. 41)

(2) Proxi: é uma variável conhecida que possui uma estreita relação com a variável que queremos conhecer. Por exemplo: conhecendo-se o número de veículos de uma dada região podemos inferir o número aproximado de pneumáticos de reposição que serão vendidos nesta região (desde que se conheça essa relação em outros locais).

(3) No artigo O Mito da Sociedade Desarmada, disponível no portal do ARMARIA (www.armaria.com.br), expomos os truques empregados pelos desarmamentistas para inflar estes números. Por exemplo, se um traficante de drogas mata seu cliente inadimplente é considerado um crime de relacionamento.

(4) Would Banning Firearms Reduce Murder and Suicide? - Don B. Kates and Gary Mauser, Harvard Journal of Law and Public Policy, Volume 30 Nº 2, Spring 2002.

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