ARMAS E REVOLUÇÃO PASSIVA

por OLAVO DE CARVALHO

Se os meios de produção constituem o critério econômico da divisão de classes, o fator que assegura a uma classe o seu papel dominante na sociedade não é a posse deles, e sim a dos meios de destruição. Eis por que, as revoluções que têm por meta nominal a mudança da estrutura econômica não tomam nunca por alvo prioritário a conquista das fábricas e dos bancos, mas sim a das instalações militares. Não a da riqueza, mas a das armas que a garantem. Nenhum materialista histórico esteve jamais embriagado de economicismo a ponto de negar essa obviedade.

Se nos períodos de paz e normalidade a riqueza financeira é um meio importante de conquistar e conservar o poder, nos de desordem e violência só um tipo de riqueza importa: a posse das armas. Nessas horas, mais pode o pobre armado do que o rico desarmado.

A lei que confere o monopólio da posse de armas a certas categorias de cidadãos representa, portanto, nada menos que uma revolução, o estabelecimento de um novo critério de estratificação social, de uma nova divisão de classes. Doravante, o povo brasileiro estará dividido em duas castas -os armados e os desarmados. Ao mais mínimo abalo da ordem cotidiana, essa distinção se mostrará mais decisiva, na prática, do que aquela que separa os pobres e os ricos, os letrados e os iletrados, os famosos e os anônimos.

Eis por que nenhuma inteligência sã pode aceitar discutir, a sério, se a lei de proibição da venda de armas ajudará ou não a reduzir a criminalidade. Ela não tem rigorosamente nada a ver com a diminuição da criminalidade, e é impossível que seus autores, todos versados em Marx, Gramsci e até Weber, não saibam disso. O combate à criminalidade é apenas o pretexto publicitário para fazer o povo aceitar, com plena inconsciência de seus efeitos, a mutação mais profunda e mais violenta que a sociedade brasileira já sofreu ao longo de toda a sua história. Que transformação tão drástica possa ser impingida pacificamente ao país enquanto os olhos da opinião pública estão desviados para discussões laterais - eis a manifestação vivente da "revolução passiva" preconizada por Gramsci, entre cujos seguidores se encontram o governador Anthony Garotinho, o dr. Carlos Minc, os próceres todos da campanha "Rio Desarme-se" e, "last but not least", o sr. presidente da República.

E, se coisa de tal monta não foi assinalada por nenhum observador num país que detém talvez o recorde mundial de cientistas sociais "per capita", é porque estes se dividem em duas categorias: os que não são capazes de percebê-la e os que, por desejá-la ardentemente, torcem para que ninguém mais a perceba. A revolução passiva é dita passiva precisamente porque não dói nem chama a atenção, mas vai penetrando insensivelmente, centímetro a centímetro, como a lâmina num tecido previamente anestesiado. A divisão do país entre os armados e os desarmados pressupõe uma outra, anterior, que a condiciona: a divisão dos brasileiros entre os gramscianos e os otários.

Entre os primeiros, o mais "soft" e portanto, o menos desonesto é o sr. presidente da República, o qual, numa mensagem para os raros bons entendedores, reconheceu que, como instrumento para o combate ao banditismo, a nova lei é apenas "simbólica". Evidentemente, não ocorreu a nenhum dos demais perguntar-lhe por que uma lei simbólica tinha sido encaminhada ao Congresso em regime de urgência nem se, considerada como instrumento para alguma finalidade totalmente diversa, a nova lei não teria algum efeito menos simbólico e mais direto.

Que essa finalidade nada tem a ver com o controle do banditismo é a coisa mais óbvia do mundo. Cassar uma autorização só afeta quem precisa dela, e nenhum quadrilheiro esperou jamais autorização do Estado para usar armas. Ademais, todas as armas em posse do crime organizado já são ilegais, sendo inócuo colocar fora da lei o que nunca esteve dentro dela. Mas o efeito nulo que a proibição terá sobre todos os grupos que, por sua natureza, já atuam voluntariamente fora da lei (inclusive os bandos de guerrilheiros rurais) contrasta dramaticamente com a profundidade e a amplitude da mudança que ela desencadeará sobre a vida de todos os demais brasileiros, de todos os brasileiros que querem viver dentro da lei.

Essa mudança pode-se enunciar da maneira mais simples: aprovada a nova lei, haverá uma nova sociedade no Brasil, com novos dominadores e novos dominados. O mais rico dos brasileiros poderá contratar um segurança, mas não se defender dele se ele decidir, de repente, passar para o lado dos sequestradores. O dinheiro será impotente, o prestígio será indefeso, a autoridade moral se tornará o discurso risivelmente inofensivo dos profetas desarmados: o único meio de acesso ao poder será ingressar na polícia, nas Forças Armadas ou numa quadrilha de traficantes.

E a nova dasse dominante não terá somente o monopólio dos meios de matar, mas também o da seleção de seus próprios membros: quem aceita ou rejeita um candidato a policial é a polícia; um candidato a quadrilheiro, a quadrilha. Por sua constituição mesma como monopolista (e monopolista da única força decisiva), a classe dos novos senhores será mais fechada, mais exclusivista e mais corporativista do que todas as suas antecessoras. E, o que é infinitamente mais grave, não haverá entre quem tem e quem não tem poder os graus intermediários que hoje matizam as diferenças hierárquicas: ao contrário do que acontece com o dinheiro, o poder político e a fama, que podem vir em quantidades maiores ou menores, entre o armado e o desarmado nenhum meio-termo é concebível.


Olavo de Carvalho, 52, jornalista e escritor, é autor de "O Jardim das Aflições" e de "O Imbecil Coletivo". Visite sua Home Page.
Este artigo foi originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo de 17 de junho de 1999.

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